48 horas. Ou “Um final de semana daqueles”

E eu estou de volta.
Falta de tempo à parte, algumas poucas novidades, exceção feita ao final de semana. Pareceu roteiro de filme B, daqueles muito trash. Ou roteiro de algum seriado mal produzido. Mas aconteceu, e foi foda. Personagens principais: Eu e Déia.
A chamada do filme? Algo do tipo: “Um final de semana daqueles: inesquecível, trágico, com toques de ação pesada, e final quase feliz”.
O roteiro seria mais ou menos o seguinte:
(editei e passei o troço lá pro link do mais texto)…


Sábado. Sono pesado. Estado mais ou menos pra lá de Bagdá, com direito a sonho sem lembranças.
Um tremor ao longe. Br… Br… Depois, uma campainha, que foi soando cada vez mais perto. Caiu a ficha, finalmente: meu celular, que primeiro toca o vibracall, e depois toca a campainha eletrônica.
Indicador de bateria na metade, 07:59 da manhã, Deia Cel: era o que dizia o visor de LCD do aparelhinho prateado Mocorola.
Mau humor controlado, eu atendi, sem disfarçar a voz de sono, por motivos óbvios. Eu queria voltar a dormir, muito.
Uma voz lá do outro lado soou desesperada. Em prantos, moça Déia não conseguia articular bem as palavras, mas o desespero era perceptível. Soluços controlados, ela sentenciou: “Estou fodida. Caiu tudo. Não tenho mais nada.”
Pensei no pior. Alguém deve estar muito mal, ou então já foi pro outro lado. Mas algo não fazia muito sentido, o “caiu tudo”. Tentando me explicar meio aos soluços e aos prantos ainda, consegui finalmente entender que um poste havia sido derrubado, e que, para alívio meu, ela só não tinha energia elétrica, telefone e internet. “Só” modo de dizer, já que o conjunto é instrumento essencial para o trabalho dela.
Entendi o desespero, e tentei acalmá-la, sem muito sucesso.
Disse-me que iria ligar para o irmão, e tentar começar a resolver o problema. Clique, e desligamos.
Entre dormir ou sair em desabalada carreira para ir em auxílio da minha mocinha, meu corpo optou por continuar o descanso. Sonolento, me joguei na cama novamente. Misturado ao sono, um pensamento me perturbava: o desespero dela. Cinco minutos bastaram para que eu percebesse que minha cabeça não iria de maneira nenhuma deixar meu corpo descansar mais.
Liguei de volta, e avisei que iria para a casa dela, logo que fosse possível.
Com o corpo ainda muito contrariado, me meti debaixo do chuveiro.
Água meio fria, pra ajudar a piorar o humor. Mas pelo menos mudou meu estado sonolento para algo entre sonâmbulo e quase-acordado. Grunfs. Não gosto realmente de acordar cedo, ainda mais em situações pouco usuais.
Entre um pãozinho com manteiga e outro, me meti a reunir ferramentas e materiais que eu imaginei que aquela situação pedia. Lanternas, rolos de fio, cordas, alicates, chaves, e uma infinidade de outras ferragens.
Tudo pro carro, e eu ainda meio-dormindo.
Parada estratégica para combustível e um novo maço de mauboro láites.
9:20h.
Na chegada, a primeira imagem. Um punhado de fios, atravessados no meio da rua, um motoqueiro sentado, encostado no muro da vizinha. Cones e fitas de isolamento. Tive que dar a volta no quarteirão, só para poder chegar um pouco mais perto, e encostar o carro.
Chorosa, desanimada, triste, e desesperada. Foi assim que eu a encontrei. Mas não havia muito tempo para lamentações.
O panorama da situação: um poste de entrada de luz, tecnicamente definido como poste de concreto duplo T, 6 metros de altura, dobrado ao meio. Os fios e conexões, espalhados pela rua, mortos e inativos. Exceção feita aos cabos de energia, que ainda estavam conectados, e que balançavam livremente a meio metro do chão.
O tal motoqueiro fazia parte da equipe de emergência da AES Eletropaulo, concessionária de fornecimento de energia elétrica, e já tinha providenciado o isolamento dos fios.
Restava aguardar a chegada das outras equipes de emergência, para avaliar a situação. Telefone, Internet, nada funcionando, e montes de fios partidos.
O jeito agora era resolver o caos. Primeira situação de incompetência: Como saber qual o poste que deveria ser comprado para a instalação? O serviço de atendimento da AES Eletropaulo não soube dizer. Pediu para ou consultar os atendentes da loja da concessionária, ou então consultar a documentação técnica INTEIRAMENTE disponível no saite. Detalhe: “Moça, um caminhão levou o poste todo como eu já falei, e eu estou sem luz, sem telefone e sem internet por cabo. A loja abre hoje? Não? E como a senhora quer que eu consulte a documentação? Hein? Aguardar até segunda? Ah sim, muito obrigada, mas não posso. Vocês são idiotas ou o quê? Ok, tchau. Click”. Foi algo assim a conversa meio surreal da Déia com a mocinha “vou estar consultando” do 0800.
O jeito foi ir até a casa do irmão, onde havia de tudo: Energia, telefone e internet.
Antes, uma paradinha para aumentar o desespero, em uma loja de material elétrico. O vendedor, prestativo, anunciou: “Ah, nós temos até um kit inteirinho montado para atender às exigências da Eletropaulo”.
Quase Oitocentos reais a brincadeira. Poste, caixa de luz, fios, conexões, e mais um monte de coisinhas.
Mais desespero.
Chegamos finalmente ao apartamento, um oásis real dentro daquele caos todo.
12:25. E a loja fecha às 13:00h.
Mais telefonemas, e uma busca insana dentro do complicadíssimo saite da Eletropaulo, para descobrir que só há duas marcas homologadas para a instalação do tal “poste padrão eletropaulo”.
12:35. E a loja fecha às 13:00h.
Outro telefonema: “Hein? Ah sim, temos esse poste. Mas o senhor tem que vir buscar na loja. Mais barato? O de concreto. Mas só na segunda. Ah, e a loja fecha às 12:45h, e estamos aqui pertinho, na Freguesia do Ó.” Forget about it.
12:40. E a loja fecha às 13:00h.
Carreira desabalada. Elevador, carro, porta da loja. 12:45h. E lá se foram os primeiros quinhentos reais. Pelo menos, às 13:15, o poste de sete metros e meio estava ali, entregue, deitado no chão da garagem.
O caos já estava mais organizado. Um almoço meio sem apetite de todos. Faltava esperar a visita de pedreiros e eletricistas para avaliar o tamanho do estrago, e calcular o estrago no bolso da Déia.
Novamente no carro, a primeira parada em uma loja de material de construção, com a lista de material pedido pelo pedreiro. Cimento, areia, pedras, e mais um quilo de coisas. Primeiro aviso pós almoço de que as coisas seriam mais complicadas do que poderia se esperar: uma tal peça estava indisponível no estoque.
Carro de novo. Destino: outra loja de materiais elétricos, mais em conta, disseram. E novamente, a mesma tal caixa de luz não encontrava-se disponível para entrega imediata.
16:30h. Sol. Chove. Para. Chove. Para.
Junto com o eletricista que fora nos encontrar ali, fomos a pé até outra casa de material. Ali pelo menos, um alívio, mesmo que momentâneo. Havia tudo. Outra conta cabeluda. Mais duzentinhos, só pra continuar com o rombo.
De volta à segunda loja, fizemos uma parada, coisa rápida. Ou achamos que seria. Instantes antes de entrarmos no carro para finalmente voltar para a casa da Déia, uma freada brusca no meio da rua, e aquele estrondo típico (e aterrorizante) de uma colisão de carros.
Eu estava no balcão, nesse instante. Olhei para trás, instintivamente.
E outra cena de filme trash. Um motoqueiro, estirado no chão, imóvel. Uma picape Fiorino, com a frente amassada, pneu furado, descendo lentamente no sentido contrário.
Corri para a porta, para ver melhor. Até ali, era o instinto de curiosidade, tipicamente humano e brasileiro, de se aproximar para ver melhor uma situação dessas. E aí bateu uma indecisão. Vou ajudar, e me meto na confusão, ou fico ali, rezando, observando, como um mero expectador de um acidente? Um segundo, dois segundos. Algumas poucas pessoas, que estavam mais próximas, já estavam junto ao motoqueiro. Primeiro momento de alívio: Ele havia se mexido. 193, talk. Saí correndo, pelo meio da rua, me desviando dos carros que já começavam a andar mais devagar, como um cortejo que passa para apreciar alguma vista.
Adrenalina.
Estranho ao lugar, fui lendo as placas de rua, para tentar indicar o local do acidente. “Final da João XXIII, esquina com Rio das Pedras, altura do 380, cemitério.. não sei.. .vila formosa. Isso. Próximo da Aricanduva.”. Não foi bem assim que eu quase gritei ao telefone. Foi uma mistura dessas palavras, desordenadas, enquanto chegava mais perto.
Mais uma imagem de impacto. Rosto ensanguentado, assim como a perna esquerda. O sangue, não tão abundante assim, escorria pela boca, nariz e ouvidos. Ainda de capacete, alguém o virou de lado. Enquanto eu gritava para deixar o moço imóvel, um rapaz desfivelou o capacete, o retirou, e virou a cabeça de lado. Muita adrenalina. Muito mais.
Então eu entendi, junto com o que o rapaz tentava me explicar: “Se ele aspirar o sangue, vai ser pior. A gente tem que virar ele”, enquanto virava o motoqueiro, e segurava a cabeça com cuidado.
Foi aí que eu percebi a moto no chão, quase intacta e ainda ligada, vazando gasolina. E eu ali, com um cigarro aceso na boca, perto. Bicho burro, pensei. Me afastei, joguei a bituca ao chão e apaguei com o pé.
Me ajoelhei então do lado do motoqueiro, tentando ajudar.
Outra imagem. Olhei melhor a perna, e foi fácil perceber. Ali, sob a calça, a perna não estava mais como antes. Fratura exposta, abaixo do joelho, dos dois ossos. Respirei fundo, e alguém me chamou, me cutucando no ombro.
Na correria, eu havia esquecido da Déia. Dez segundos antes, ela estava dentro do carro, sentadinha, para irmos embora. Agora, ela estava ali, atrás de mim, e queria saber como ajudar. Respondi que ali não havia muito mais. Pedi que ela saísse do meio da rua, e voltasse para o carro.
Entre momentos de inconsciência, e consciência relutante, o motoqueiro estava ali, na minha frente. O rapaz que havia tirado o capacente, tentava manter o coitado acordado, enquanto mandava a multidão de curiosos para longe. E tentávamos manter o moço imóvel no chão, quando ele voltava e tentava se virar, e desvencilhar a cabeça, tronco e braços, reclamando e praguejando.
E nada da viatura do resgate. Vinte minutos, meia hora, quarenta minutos. Aquilo ali era a eternidade se mostrando, enquanto uma fila enorme de carros e ônibus se acumulava, e seus motoristas, curiosos e impacientes, não economizavam na mão sobre a buzina.
De repente, o celular toca. Eu quase xinguei. Quem é que me liga numa hora dessas (como se quem estivesse do outro lado tivesse a mínima noção de onde eu estava, e o que eu estava fazendo). Por um instante, achei que fosse o Gui Bracco, pelos primeiros quatro dígitos que o identificador de chamadas mostrou. Resolvi atender (ô bicho besta), e não sabia se eu iria esbravejar ou tentar parecer um lorde inglês no meio daquela confusão toda.
Antes que eu me decidisse, eu atendi. Do outro lado, um “alô” amistoso, como se fosse alguém que me conhecesse. Não era. Era o serviço do resgate, para confirmar o endereço, e avisar que estava chegando. Ufa.
Pareceram horas. Muitas horas. A cada sirene, uma esperança. Mas eram só viaturas policiais, que estavam chegando antes da ambulância.
Curiosamente, eles ficaram ali, ou no rádio, ou orientando o trânsito, ou perto da viatura. Eu e o outro rapaz continuávamos ali, amparando o acidentado, que ia e voltava. Falava e apagava.
Enquanto o Resgate não chegava, uma conversa entre os novos samaritanos. O tal rapaz, mais sujo de sangue do que eu, falou que era enfermeiro, e que já havia trabalhado em hospital. Uma moça, que havia chegado pouco depois, trabalhava em uma farmácia próxima. Fiquei menos nervoso, mas estava impaciente.
A explosão de adrenalina me deixou completamente ligado: era um quadro surrealista. Mas eu percebi que os sons além daquela quadra de pessoas não eram inteligíveis. Era uma babel sonora. Registrei mentalmente naquele momento que adrenalina me deixa meio surdo.
Finalmente, com uma explosão de luzes e sirenes, o Resgate chegou. Seguros, quatro homens uniformizados desceram. Parecia que estavam chegando em um evento social, de tão tranqulios. O primeiro foi direto para a perna fraturada, para cortar a calça. Outros se seguiram, e finalmente, eu me levantei. E me afastei. Sabia que a partir dali, eram os samaritanos profissionais, e ele estaria em boas mãos.
Voltamos para a loja, o enfermeiro e eu, em busca de uma pia. Depois de muita água, sabão e álcool, finalmente conseguimos descobrir o nome um do outro. Marcelo, enfermeiro, é tudo o que eu sei.
Um cigarro depois, e ainda adrenalizado, fui voltando à realidade. Ou melhor, voltei para o caos do poste caído.
Moça Déia me abraçou, e me disse palavras carinhosas. Eu sorri, feliz por aquele pesadelo estar quase no fim. Menos de cinco minutos depois, o motoqueiro já estava imobilizado, dentro da viatura.
No carro novamente, e a caminho da casa-sem-poste. Só aí é que conseguimos medir o tempo de chegada da viatura. Algo em torno de 16 minutos. Me pareceram horas.
Chegamos de volta, e eu sentei, exausto. Menos adrenalizada do que eu, a Déia lembrou de um detalhe: ainda deveríamos retornar à primeira loja de material, para buscar o que não havíamos encontrado. Argh.
E lá fomos nós, pro carro de novo.
Duzentos e oitenta quilos de material depois, fomos de mala e cuia para a casa do brother da Déia, para um merecido banho e jantar.
Mas não sem antes tentar ligar de novo para a Eletropaulo. Eles haviam esquecido de retirar o relógio de medição, e sem que ele fosse retirado, o novo poste e a nova caixa de luz não poderiam ser instalados.
Primeira ligação, uma moça “vou estar te atendendo” não possuía QI suficiente, e não consegui fazer com que um técnico retirasse logo o tal troço. Dois dias úteis, ela dizia. Não havia argumento. Me irritei, e informei (não foi ameaça, já que era decisão mesmo) que eu entraria com um processo contra a Eletropaulo e… “A AES Eletropaulo agradece sua ligação, click”. A filha da puta incompetente e medíocre desligou na minha cara.
Nessa hora, tive que fazer valer meus genes nipônicos.
0-800-socorroeletropaulo de novo.
Dessa vez, a pessoa tinha QI. E bom senso. E sabia qual era a responsabilidade dela ali: tentar resolver o problema. Uma hora depois (sem exagero), o problema havia sido resolvido. Ou melhor, eles concordaram em acabar de cumprir o procedimento deles.
Relógio retirado, volta à casa-sem-poste, e cama.
Fim do Primeiro Dia.
Sim, tem mais.
Mas o segundo dia eu escrevo depois.”
E essas basicamente foram as primeiras vinte e quatro horas desse final de semana…
Eu vou pra casa, descansar. Hoje eu realmente mereço.
Amanhã, ou mais tarde, eu tento escrever e continuar a saga.
Ah sim, hoje a Déia já tem telefone funcionando, assim como internet. Só pra que ninguém fique preocupado.
Até mais, pessoas.

Comments (1)

AndreiaMarch 9th, 2005 at 20:15

Isso dá um livro ou, 😉 mandarei para a bonitinha da Denise Fraga.